Há alguns meses atrás, durante a minha visita a Roma, cometi o erro que turista algum deve cometer quando se encontra numa cidade estranha: tomei um atalho. Enquanto caminhava do Fórum de volta para o meu apartamento junto ao Rio Tibre, eu deveria ter tomado o caminho mais óbvio através da Corso Vittorio Emanuele II rumo ao Castel Saint 'Angelo, mas decidi que sabia para onde caminhava, e como tal, usei o caminho mais directo através alguns árvores e rapidamente me perdi.
Depois de me aventurar por uma rede de pequenas vias tentando encontrar a estrada principal, vi mais à frente uma piazza e decidi seguir em frente para me orientar através dela. Parei perto duma estátua no meio da praça para olhar para o meu mapa, olhei para a estátua e rapidamente vi quem era. Apercebi-me que estava no Campo de'Fiori, visto que a estátua era o famoso monumento dedicado a Giordano Bruno, erigido no local onde ele foi queimado na fogueira em Fevereiro de 1600.
Bruno é a imagem-propaganda para a
"Draper-White Thesis" - a ideia de que a ciência e a religião sempre estiverem em guerra, uma ideia muito querida do movimento dos Novos Ateus apesar dela ter sido efectivamente rejeitada pelos historiados da ciência há mais de 100 anos. Tentem ter algum tipo de discussão inteligente das inter-relações complexas, reais e cheias de nuances entre a religião e o que estava para emergir como a ciência moderna durante o período medieval e a fase inicial do período moderno, e Bruno é normalmente usado como a "prova" de que a Igreja era um inimigo implacável e ignorante da ciência primitiva. Afinal, porque é que se atreveram a queimá-lo na fogueira senão pelo facto dele ter afirmado que a Terra não era o centro no universo, e que as estrelas eram outros sóis com outros planetas?
Para aqueles que preferem slogans e caricaturas simples em vez do trabalho árduo de efectivamente analisar e entender a História, Bruno é uma resposta simples para uma questão complexa. A nuance e a complexidade são as primeiras vítimas da guerra cultural.
Portanto, quando eu vi os primeiros clips promocionais da versão reformulada da série "Cosmos", de Carl Sagan (desta vez apresentada pelo genial protegido de Sagan, Neil deGrasse Tyson), e reparei numa sequência animada de alguém a ser ameaçado por Inquisidores e queimado na fogueira, soube logo que a ressuscitada série Cosmos seria apresentada com deformações históricas. Acho que isto nada mais é que seguir os passos de Sagan visto que na série original ele desviou-se rumo a uma visão distorcida da
Hipatia de Alexandria que fixou na mente duma geração inteira a ideia de que ela era uma mártir da ciência, tal como já falei noutro local.
Portanto, quando as primeiras imagens da série "Cosmos: A Spacetime Odyssey" foram emitidas durante a semana passada, uma das partes mais importantes era uma versão de 11 minutos do mito de Bruno. Eu normalmente refiro-me à fábula moral simplista que as pessoas confundem com a história da relação entre a Igreja e a ciência primitiva como a "versão desenhos animados", visto que ela é reduzida a uma caricatura a preto e branco, simplista e bi-dimensional da realidade. Mas neste caso ela é mesmo a versão desenhos animados; a sequência foi animada, e a voz de Bruno foi providenciada pelo produtor-executivo, Seth MacFarlane, famoso por fazer a série Family Guy; deve ser por isso que Bruno tem um sotaque italiano do tipo normalmente ouvido em anúncios publicitários para uma pizza ou para molhos de macarrão.
Os clichés não acabam com os sotaques apalermados. Na versão estranhamente distorcida da história que o programa mostra, Bruno é caracterizado como um frade jovem e sério de Nápoles, verdadeiro pesquisador da verdade. Mas DeGrasse Tyson assegura-nos que "ele atreveu-se a ler os livros banidos pela Igreja e essa foi a sua ruína." Por essa altura é-nos mostrada uma sequência onde Bruno lê uma cópia de Lucrécio com o nome "On the Nature of Things" que ele tem escondida debaixo do soalho da sua cela.
O primeiro problema com isto é que o trabalho de Lucrécio não foi de maneira nenhuma "banido pela Igreja", e ninguém precisava de o esconder por baixo do seu assoalho. Poggio Bracciolini tinha publicado uma edição impressa do livro um século antes de Bruno ter nascido, e ele nunca foi banido durante o período em que os manuscritos medievais sobre os quais Bracciolini trabalhou haviam sido copiados (e nem foi o livro banido depois da sua edição se ter tornado amplamente disponível). A ideia de que a Igreja baniu e/ou tentou destruir o trabalho de Lucrécio é um mito que Christopher Hitchens gostava de repetir, e um mito que recebeu uma concessão de vida popular através do terrível trabalho pseudo-histórico de Stephen Greenblatt, "The Swerve", que, de alguma forma, ganhou um Prémio Pulitzer apesar de ser uma pastiche de disparates.
O desenho animado de Tuson prossegue retratando Bruno tendo a sua mente aberta pela ideia dum universo infinito presente no livro de Lucrécio, mas sendo depois expulso sa sua confraria por uma turba de personagens de igreja, ao estilo dos vilões da Disney, que aparecem de forma inesperada tal como na "Inquisição Espanhola" da série da humor "Monty Python". Isto, obviamente, é uma parábola bem melhor que a verdade; o trabalho de Lucrécio não foi banido pela Igreja, e Bruno virtualmente fugiu da sua casa religiosa e não foi despejado por ter lido livros maldosos.
Outra coisa que teria complicado este desenho animado simplista seria reportar onde foi que Bruno obteve as suas ideias dum universo vasto onde a Terra não era o centro, onde as estrelas eram outros sóis, onde existia uma multiplicidade de mundos e onde alguns destes outros mundos poderiam ser habitados. Bruno não obteve estas coisas numa visão enquanto dormia, como alega o desenho animado da "Cosmos", mas sim directamente dum homem que ele chamou de "Cusano o divino" - o filósofo natural e teólogo com o nome de Nicholas de Cusa.
Se os escritores da série realmente estivessem interessados na verdadeira história em torno das origens do pensamento científico, encontravam-se à sua disposição muitas outras histórias pessoais que poderiam ter sido mais dignas de serem contadas do que a história de Bruno - pessoas que eram proto-cientistas no verdadeiro sentido do termo. Os escritores do programa, Steven Soter e a viúva de Carl Sagan, Ann Druyan, parece que sabiam o suficiente em torno de Bruno para estarem cientes de que não o poderiam apresentar como um cientista, e a narração de DeGrasse Tyson a dada altura menciona que Bruno "não era um cientista".
Mas eles tocam de forma imperceptível no facto de Bruno, segundo a nossa forma de pensar, ter sido um completo místico maluco. Na sua defesa feita à sequência animada de Bruno, que entretanto gerou críticas, Soter ressalva que muitas outras figuras da ciência primitiva também levaram a cabo estudos que nós qualificamos de não-científicos, tais como a obsessão de Newton com a alquimia e com os cálculos apocalípticos. Mas a diferença é que Newton e Kepler dedicaram-se a esses estudos ao mesmo tempo que faziam estudos baseados na verdadeira ciência empírica, enquanto que o misticismo hermético de Bruno, a geometria sagrada, e a ilegível e largamente inventada religião Egípcia antiga eram a totalidade dos seus estudos; ele nunca chegou a fazer verdadeira ciência.
Mas se eles [Soter e a viúva de Sagan] realmente quisessem ser exactos, eles deveriam ter detalhado, ou pelos menos reconhecido, a dívida de Bruno a Nicholas de Cusa, que falou num universo infinito sem centro 109 anos de Bruno ter nascido. Eis aqui o que Cusano diz no seu livro "De docta ignorantia":
O universo não tem circunferência, uma vez que se tivesse um centro e uma circunferência, existiriam coisas para além do mundo, suposições que têm uma total ausência de verdade. Logo, uma vez que é impossível que o universo se encontre fechado dentro dum centro corporal e limites corporais, não está dentro do nosso poder entender o universo, Cujo Centro e Circunferência são Deus. E embora o universo não possa ser infinito, mesmo assim ele não pode ser concebido como finito visto que não limites dentro dos quais ele possa ser limitado.
Este é o discernimento que o desenho animado de Bruno atribui por inteiro a ele. Porque não, então, atribuí-lo a "Cusano o divino"? Bem, isso iria destruir por completo a parábola, visto que, longe de ser pontapeado por vilões mal-encarados ao estilo de desenhos animados da Disney, Cusano era reverenciado e foi na verdade nomeado para cardeal. Isto, claramente, não fica bem dentro da fábula moral de génios livres-pensadores a serem oprimidos por teocratas dogmáticos.
O desenho animado prossegue retratando o corajoso Bruno a dar uma palestra em Oxford perante estudiosos irritáveis e de aparência aristocrática a colocarem objecções à sua promoção do Copernicanismo e, eventualmente, a atirarem-lhe peças de fruta e a expulsarem-no. Mais uma vez, a realidade não é assim digna. Não há qualquer evidência de objecções ao heliocentrismo e o problema que os estudiosos de Oxford tinham com ele era o plagiarismo que Bruno havia feito de outro estudioso. Mas, outra vez, isso não fica bem na fábula do puro livre pensador vítima de perseguição.
A ideia presente por todo o desenho animado é a noção de que ele foi afligido porque deu o seu apoio ao heliocentrismo e à tese dum universo sem limites, onde a Terra não era o centro. Como já tivemos oportunidade de ver, a segunda ideia não era nova e nem era controversa. Pelos finais do século 15, a hipótese heliocêntrica de Copérnico também não era particularmente nova, embora fosse mais controversa (practicamente nenhum cientista a aceitou porque ela era reconhecida como tendo várias falhas científicas). O ponto importante a lembrar é que por esta altura, essa ideia não era considera uma heresia por parte das autoridades religiosas, embora algumas pessoas pensassem que ela tinha alguma implicações preocupantes.
O próprio Copérnico não havia sido o primeiro proto-cientista a explorar a ideia duma Terra em movimento. Por volta de 1377 o estudioso medieval
Nicholas Oresme havia analisado as evidências que apoiavam a ideia da Terra girar, e achou a ideia pelo menos plausível.
A Igreja nem se importou com essa ideia. Os cálculos de Copérnico e a sua ideia já estavam circulação muito antes do seu opus ter sido publicado postumamente e ele gerou o interesse de várias figuras ligaras à Igreja, incluindo o Papa Clemente VII, que conseguiu que Johan Widmanstadt desse uma palestra pública em torno da teoria nos jardins do Vaticano que o Papa qualificou de fascinante.
Depois disso, Nicholas Cardinal Schoenburg insistiu que Copérnico publicasse o trabalho inteiro, embora Copérnico tivesse atrasado não por motivos de temer algum tipo de perseguição religiosa mas sim por temer a potencial reacção de outros matemáticos e astrónomos. O heliocentrismo não se tornou num tópico religioso "quente" até o incidente em torno de Galileu, em 1616, uma década e meia depois da morte de Bruno.
Mais uma vez, os escritores de "Cosmos" parecem estar vagamente cientes de tudo isto e como tal, fazem um imaginativo sapateado como forma de impedir a implosão da sua fábula. Na caracterização do julgamento de Bruno feita pelos desenhos animados da série "Cosmos", temos a primeira evidência de que os pontos de discórdia entre a Igreja e Giordano Bruno em nada estavam relacionados com a ideia dum universo infinito, múltiplos universos, ou qualquer outra especulação cosmológica. Devido a isto, os Inquisidores ao estilo da Disney listam uma série de acusações tais como "questionar a Santíssima Trindade e a Divindade de Jesus Cristo" e mais algumas acusações puramente religiosas.
A caracterização da séria gera a impressão de que estas eram acusações menores, ou até acusações inventadas, mas na realidade, estas foram a verdadeiras razões que levaram Bruno, bem como outros, à fogueira. Por mais horrível que isso seja para nós, negar a virgindade de Maria, afirmar que Jesus era só um mágico ou negar a Transubstanciação, podiam levar uma pessoa à fogueira por volta de 1600 AD, embora só se a pessoa recusasse as repetidas oportunidades para se retratar.
Mas o desenho animado da série quer-se manter fiel à sua parábola, e como tal, eles colocam no final da lista de acusações, e nós somos levados a acreditar que esta era a acusação mais grave, "afirmar a existência de outros mundos". Mas como já vimos, isto não era problema algum para a Igreja. Eis aqui o que Nicholas de Cusa diz sobre estes outros mundos no livro que inspirou muitas das crenças de Bruno:
A vida, tal como aquela que existe na Terra na forma de homens, animais e plantas, pode ser encontrada, suponhamos nós, na sua forma mais elevada nas regiões solares e estelares. Em vez de pensarmos que tantas estrelas e partes dos céus se encontram inabitadas, e que só esta nossa Terra está povoada de pessoas - e mesmo assim, com seres dum tipo inferior - iremos supor que todas as regiões se encontram habitadas, distinguido-se na natureza pela sua categoria, e todas elas devendo a sua origem a Deus, Que é o [C]entro e a [C]ircunferência de todas as regiões estelares .... Dos habitantes dos outros mundos, para além do nosso, podemos saber por enquanto ainda menos coisas, não tendo um padrão através do qual os louvar.
Mais uma vez, lembrem-se que Cusano não foi queimado na fogueira, e que ele era reverenciado, louvado e foi feito cardeal.
A única menção feita a outros mundos na acusação contra Bruno especifica que ele acreditava numa "pluralidade de outros mundos e na sua eternidade". Foi esta última parte que se tornou num problema, e não o facto dele ter dado o seu apoio a uma tese que um líder da Igreja havia falado um século antes.
O desenho animado termina com as ressalvas de DeGrasse Tyson relativas ao facto de Bruno "não ter sido um cientista" e que as suas ideias não terem sido mais que "palpites de sorte". Alguns comentadores parecem ser de opinião de que isto de alguma forma absolve toda a sequência das suas distorções, e que o programa apenas caracteriza Bruno como mártir do pensamento livre e que a sua história é uma lição sobre os perigos do dogmatismo. Mas o problema com o desenho animado é que ele é uma pastiche da verdadeira história.
A verdadeira história de Cusano poderia, na verdade, ser muito mais interessante de ser contada, e ela não estaria carregada de bagagem inspirada pela tese Draper-White em torno dos mitos que existem sobre Giordano Bruno. Mas a sequência inteira parece ter sido motivada por uma agenda e a história do herético queimado na fogueira serviu ao propósito dessa agenda duma forma que a história dum cardeal reverenciado livre de oposição nunca poderia ter servido.
O objectivo parece ser o de formar uma opinião em relação ao pensamento livre e ao dogmatismo dentro do contexto da guerra cultural nos EUA em torno do Criacionismo. Que Bruno era um crente em Deus é uma ideia repetida por diversas vezes no desenho animado, embora ela tenha sido mais um panteísta que outra coisa qualquer. Mas ele é mostrado como um crente de mente aberta e sem constrangimentos que foi oprimido e, eventualmente, morto pelas forças do dogmatismo literalista.
O grito de Bruno quando lhe estavam a atirar peças de fruta em Oxford - "O vosso Deus é demasiado pequeno!" - é, na verdade, o propósito de toda a parábola. Toda a sequência tem como alvo os literalistas dogmáticos da guerra cultural Americana ao mesmo tempo que tenta apelar aos crentes, dado que a maior parte da audiência Americana seriam teístas. Esta é o enquadramento desta fábula e os escritores cortaram partes da verdadeira história de Bruno e de forma desarrumada uniram tudo até gerar esta mensagem moderna.
E isto leva-me de volta ao meu encontro com a estátua no
Campo de'Fiori; a estátua foi criada por Ettore Ferrari, e erigida em 1889 pouco depois da unificação da Itália, apesar da oposição da Igreja. O monumento,
erigido por membros da Ordem Maçónica "Grande Oriente de Itália", foi um símbolo político anti-clericalista deliberado. Os ateus e os livres pensadores reverenciam-na até os dias de hoje, e comemoram a execução de Bruno no dia 17 de Fevereiro de todos os anos.
Claro que qualquer pessoa que ressalve que Bruno é um ícone ridículo para os ateus, dadas as suas visões místicas excêntricas e as suas prácticas mágicas, é normalmente ignorada. E qualquer pessoa que tenha a temeridade de ressalvar que Bruno foi executado por motivos puramente religiosos, e não por especular acerca de uma multiplicidade de mundos ou um universo infinito, é normalmente (e de modo bizarro) acusada de justificar a sua horrível execução.
Tal como já disse, para pessoas que se identificam como "racionalistas", muitos dos meus amigos ateus podem ser tudo menos racionais. Infelizmente, o desenho animado tolo de Neil deGrasse Tyson, Ann Druyan, Steven Soter e Seth MacFarlane sobre Bruno não irá definitivamente ajudar em nada em relação a isso.